Sergio Machado, Bruna Velasques, Flávia Paes, Marlo Cunha, Luis F. Basile, Henning Budde, Maurício Cagy, Roberto Piedade, Pedro Ribeiro.
INTRODUÇÃO
Três dicotomias um tanto artifciais tem atormentado a neurologia desde suas origens. Primeiro,
existiu um debate se diferentes capacidades mentais são claramente localizadas em módulos ou são elas
mediadas de uma forma holística? Segundo, se os módulos especializados existem, se eles funcionam de for-
ma autônoma ou se eles interagem substancialmente? Terceiro, são eles fexíveis ou podem ser modifcados
pela mudança na entrada de informações, mesmo em cérebros de adultos, ou seja, seria o dano cerebral em
adultos irreversível ou seria possível alguma recuperação? Inúmeras gerações de profssionais de medicina
foram ensinadas que funções são localizadas e fxas e que danos são geralmente permanentes; embora exis-
tam sempre vozes divergentes. No entanto, vem ocorrendo uma mudança de paradigma na neurologia com
um aumento na rejeição deste dogma clássico. Essa mudança teve seu início no trabalho de Patrick Wall,
através de suas evidências para a nova visão de função cerebral. Foram levadas em conta evidências de ambas as interações intersensoriais assim como da plasticidade dos módulos cerebrais. É claro que todas essas evidências são provenientes de investigações em cérebros adultos; contradizendo o dogma de comunicações cerebrais imutáveis 1,2.
Partindo desses princípios, na tentativa de atenuar os défcits sensório-motores e acelerar o pro-
cesso de recuperação funcional, atualmente a técnica de terapia-espelho (feedback visual espelhado), intro-
duzida por Ramachandran e Rogers em 19921 para o tratamento de pacientes com dor fantasma, é utilizada
para o tratamento da hemiparesia pós-AVC. A terapia espelho consiste de uma técnica que usa um espelho de 2 x 2 m, verticalmente apoiado sagitalmente no meio de uma caixa retangular. A técnica sugere que uma rede neural responsável pelo controle de uma mão em uma determinada tarefa pode ser utilizada nos movimentos de outra mão, referindo-se à capacidade de memorização de um procedimento. A idéia é reeducar o cérebro através de uma simples tarefa, onde o indivíduo realiza uma série de movimentos com o braço saudável, sendo que este é visto ao espelho como se fosse o braço lesionado. Dessa forma, pretende-se “enganar” o cérebro, fazendo com que ele imite os movimentos do braço
lesionado através do refexo do braço não-lesionado no espelho3.
Após este trabalho inicial, realizado por Rama-chandran e Rogers1, outros estudos subsequentes se
inspiraram nestes achados utilizando a terapia-espelho2. Muito se especula sobre a efcácia da técnica, de-
vido aos bons resultados observados através de estudos clínicos recentes. Dessa forma, sugere-se que a técnica possui um grande potencial para futuras aplicações e implicações no campo da neurologia. Mesmo que somente uma pequena proporção de pacientes seja ajudada, estes resultados já seriam de grande valor, dado à alta incidência de AVCs, já que cerca de um décimo da população mundial sofrerá algum tipo de défcit sensório-motor relacionado ao AVC. Além disso, mesmo que a técnica benefcie uma minoria de pacientes, esta é capaz de preparar o caminho para um futuro mais completo de terapias efetivas uma vez que conhecemos as variáveis envolvidas. Em estudo piloto placebo-controlado conduzido com 9 pacientes, foi observada uma recuperação funcional moderada em 3 pacientes, leve em outros 3,
e quase nenhuma nos últimos 3. Subsequentemente, um número de relatos de caso e series4-6 encontraram
benefícios para a hemiparesia pós-AVC. Mais recentemente, 2 estudos randomizados e controlados encon-
traram melhora signifcativa da hemiparesia7,8 . Ambos os estudos utilizaram 40 pacientes com hemiparesia,
sendo no primeiro com hemiparesia de membros inferiores 7 e no segundo com hemiparesia de membros
superiores 8 inscritos até 12 meses pós-AVC.
Os sujeitos foram randomizados em grupo de terapia-espelho (movimentos das pernas para o primeiro estudo e movimentos de ambas as mãos e braços para o segundo) ou de controle, sendo que todos os sujeitos receberam um protocolo de fsioterapia como intervenção controle. Foi verifcada uma melhora estatisticamente signifcativa dos défcits sensório-motores através da escala de Brunnstrom e pela escala FIM em favor do grupo que recebeu terapia-espelho quando comparados ao grupo controle. Estes resultados indicam que muitos pacientes mostram recuperação substancial de suas funções usando terapia-espelho. Mas a variabilidade sugere que a técnica pode ajudar alguns pacientes mais do que outros. Esta variabilidade pode depender em parte do local exato da lesão e duração dos défcits pós-AVC. Uma vez que estas variáveis tenham sido entendidas, pode ser possível administrar a terapia-espelho para estes pacientes que são capazes de se benefciarem mais (embora a simplicidade da técnica, esta possui potencial para ser implementada habitualmente como tera-
pia adicional). A maneira pela qual é estabelecida a restauração da ligação entre visão e movimento pode levar a uma resolução da paralisia aprendida em pacientes pós-AVC, e com isto em mente, uma possível explicação clínica para os resultados apresentados acima, seria o sistema de neurônios-espelho (SNE)9.
Este sistema de neurônios é encontrado tanto nos lobos frontal quanto no parietal, áreas ricas em neurônios responsáveis por comandos motores, os quais disparam na produção de movimentos habilidosos simples, tais como se alguém pegasse um amendoim ou pusesse uma maçã em sua boca. De forma extraordinária, um subconjunto desses neurônios, “neurônios-espelho”, também disparam quando alguém apenas observa outra pessoa realizar o mesmo movimento. Os neurônios-espelho permitem que um sujeito se coloque no lugar de outro, vendo o mundo desde a perspectiva do outro, não somente física, mas também mentalmente, a fim de deduzir a ação iminente do outro. Neurônios-espelho necessariamente envolvem interações entre modalidades múltiplas, visão, comandos motores, propriocepção, os quais sugerem que eles poderiam estar envolvidos na efcácia da terapia-espelho em pacientes pós-AVC. Quando se trata do AVC, as reorganizações da imagem corporal no córtex sensorial e motor podem gerar limitações reais do mo-
vimento, mas também limitações que podem ser classifcadas como “paralisia aprendida.” Isto se dá devido a
um vaso sanguíneo obstruído no cérebro, as fbras que se estendem do cérebro para a medula espinhal fcam
sem oxigênio e sofrem um dano, gerando uma paralisia real; porém, nas fases iniciais de um derrame, o
cérebro apresenta um edema, deixando também, temporariamente, alguns nervos simplesmente atordoados
e desligados. Durante este período, quando o membro não funciona, o cérebro recebe feedback visual negativo. Depois que o edema diminui, em virtude da vivência de um feedback visual negativo, é possível que o cérebro do paciente fque com uma forma de “paralisia aprendida”3
Uma possibilidade é que caso exista um resíduo de neurônios-espelho sobreviventes e latentes,
através da terapia-espelho um fornecimento de informação visual através da terapia-espelho poderia reviver
os neurônios motores. Tal possibilidade foi investigada e confrmada por um grupo de pesquisadores que utilizaram em um grupo experimental um protocolo composto de terapia-espelho e também de vídeos onde os pacientes assistiam a movimentos realizados por pessoas sadias, para que logo após tentassem usar seu braço parético para realizar os movimentos. Comparado ao grupo controle que realizou um protocolo de fsioterapia convencional e assistiu um vídeo com símbolos geométricos, o grupo experimental apresentou resultados superiores. Os autores salientam ainda que este protocolo possa ser utilizado por pacientes com hemiparesia bilateral pós-AVC, através do movimento de um braço por parte do paciente enquanto assiste o refexo do braço do fsioterapeuta no espelho10.
Partindo do princípio de que além dos tratos córtico-espinais que trafegam contralateralmente desde o córtex motor, existem também alguns ipsilaterais. Por exemplo, o córtex motor direito envia suas eferên-
cias não somente para o lado esquerdo da medula espinal como ainda se pensa, mas também para a medula
espinal contralateralmente. Dentro deste contexto, argumentamos se, seriam estas vias excitatórias ou ini-
bitórias? Seriam estas funcionais ou vestígios remanescentes de alguma via antiga não cruzada antes? Quan-
do comandos são enviados para o lado contralateral do corpo, por que nenhum comando vai simultaneamente para os músculos ipsilaterais? Seriam, portanto esses movimentos ipsilaterais reprimidos espelhados no lado esquerdo? E por último, se as informações do hemisfério direito para o lado esquerdo, medula espinal e corpo é danifcada pelo AVC, então por que a via ipsilateral desde o lado esquerdo para a medula espinal não pode assumir o comando e mover o membro paralisado? Nenhuma dessas questões foi respondida satisfatoriamente, porém com uma investigação mais meticulosa, seria possível tirar vantagem dessas conexões em um cenário clínico, pois talvez o feedback visual atue reativando estas conexões ipsilaterais latentes10.
Os estudos sobre terapia-espelho demonstram que a referida técnica tem grandes implicações, ambas
para a prática clínica e para nosso entendimento teórico do cérebro. Do ponto de vista clínico, os estudos
sugerem que a terapia-espelho pode acelerar a recuperação funcional de uma ampla gama de desordens
sensório-motoras, tais como hemiparesia pós-AVC ou outra lesão cerebral1-8. Em um nível teórico, os achados também têm grande relevância para nosso entendimento de função cerebral normal e anormal. A antiga visão de função cerebral (modelo padrão), proveniente do século passado e que a neurologia ainda tem se baseado, é a noção que o cérebro consiste de um número grande de módulos autônomos altamente especializados que interagem muito pouco com os outros no nascimento. Desordens neurológicas, nesta visão, resultam de um dano relativamente irreversível e permanente para um único ou um pequeno subconjunto de módulos, o qual não explicaria exatamente a especifcidade da localização de sinais e défcits, mas também porque existe geralmente tão pouca recuperação de função após lesões ou danos cerebrais. Ao eliminar um módulo automaticamente uma função é eliminada para sempre.
Em conclusão, os resultados aqui apresentados têm grandes implicações, tanto para prática clínica
quanto para o entendimento teórico sobre o funcionamento do cérebro. Do ponto de vista clínico, os resul-
tados sugerem que a terapia-espelho pode acelerar a recuperação de funções em pacientes hemiparéticos que sofreram AVC e possivelmente outras lesões ou danos cerebrais, tal como o traumatismo crânio-encefálico, ou até mesmo lesões periféricas, tal como síndrome dolorosa complexa regional. Resta saber se pacientes com outras doenças, como Parkinson ou distonias focais, poderiam se benefciar do uso desta terapia. Ainda que pareça improvável, tal questão merece ser explorada. Na verdade, estes achados demonstram inequivocadamente que usando procedimentos muito simples, podem ser anuladas barreiras entre módulos (e.g. entre visão e propriocepção), e, mais extraordinariamente, entre um cérebro e outro, um paciente literalmente vivencia outra dor em seu membro1,3.
Tais achados sugerem que é necessário repensar a visão de que o cérebro trabalha de forma seriada e hierárquica com seus módulos e substituí-la por uma nova visão mais dinâmica. Ao invés de se pensar os módulos cerebrais como infexíveis e autônomos estes deveriam ser vistos como estando em um estado de equilíbrio dinâmico com o outro e com o ambiente (incluindo o corpo), com conexões sendo constantemente formadas e re-formadas em resposta a mudanças ambientais necessárias. Uma disfunção neurológica, pelo menos em algumas instâncias poderia ser causada não tanto pelo dano irreversível de um módulo, mas por uma mudança funcional no equilíbrio. Dentro deste contexto, talvez o ponto de equilíbrio possa ser modifcado para seu estado normal pelo pressionamento de uma tecla “reset” usando relativamente um procedimento simples e não-invasivo como a terapia-espelho.
CONCLUSÃO
Os mecanismos neurofsiológicos envolvidos para explicar a terapia-espelho ainda não são claros,
mas estão relacionados com o efeito causado pelo feedback visual em áreas corticais sensório-motoras.
Essa entrada visual pode ser o sufciente para evocar a percepção cinestésica em certas circunstâncias. Neste contexto, a terapia-espelho é uma possibilidade segura e útil que vem demonstrando resultados positivos na recuperação funcional de pacientes com hemiparesia pós-acidente vascular cerebral.
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Grupo G3: Fernando Douglas - Jordana Pessoa - Larissa Almeida - Lucas Braga - Mariana Mapurunga - Thiago Fortes
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